Automação da Percepção e rivalidade estratégica: a captura do futuro

16/03/2023 14:35

por Eduardo Barros Mariutti

Sistemas preditivos de vigilância e armamentos autoguiados operam mediante uma percepção automatizada do realconstituída por um conjunto de sensores que captam estímulos indetectáveis pelo sensório humano de forma extremamente acelerada. Paul Virilio chamou isto de automação da percepção. O final da década de 1980 foi marcada pela generalização de sistemas “inteligentes”, isto é, computadores em rede que interpretam eletronicamente o sentido dos acontecimentos por meio de uma análise probabilística dos futuros potenciais que se desdobram do atual. Ver, neste sentido, é sempre prever e, também, memorizar. Só captamos o sentido de um acontecimento combinando o passado imediato (memória) com inferências sobre seus futuros possíveis. Fazemos isso quanto atravessamos uma rua ou andamos pelo shopping lotado. As máquinas perceptivas também fazem. Logo, toda percepção maquínica exige algum grau de inteligência artificial.

As bases do processo de automação da percepção já se insinuam na renascença, quando as próteses de visão (lunetas e lentes) entraram em sinergia com a perspectiva linear e as demais técnicas de geometria projetiva, acelerando o processo de matematização do campo visualum dos principais fundamentos de todas as técnicas e agenciamentos contemporâneos associados à vigilância e à conduta a guerra. Mas foi a Guerra Fria e o sistema de dissuasão nuclear que acelerou a automação das formas de percepção do campo de batalha – sistemas de satélites, radares, sonares etc. – e da sofisticação dos armamentos. Como afirma Antoine Bousquet (The Eye of War), testemunhamos hoje a combinação de dois movimentos que caminhavam em sentido oposto. A rivalidade estratégica de ponta tende a formar um sistema heterogêneo de vigilância global que, contudo, é cada vez mais granular, capaz de identificar como alvos até mesmo indivíduos.

Os alvos podem ser previamente conhecidos ou designados como “ameaças” potenciais identificadas pelo seu comportamento e/ou redes de associação interpessoal, um procedimento que é formalmente designado como pattern of life analysis Por meio de uma análise de risco baseada em inferências calibradas pela noção de complexidade, um conjunto heterogêneo de dispositivos e agenciamentos que antes operavam apenas na escala macroscópica e regida pela ideia de um campo de batalha formal, onde a identidade dos alvos era irrelevante, dado que o que realmente importava era o fato de serem combatentes (i.é. membros de uma entidade coletiva engajada em um conflito formalmente declarado)hoje se tornaram capazes de identificar e causar dano em alvos particulares, operando inclusive em territórios que não são considerados oficialmente zonas de guerra. Essa dissolução do campo de batalha tende a ofuscar as distinções tradicionais entre paz e guerra e a generalizar para toda a sociedade uma lógica securitária orientada pela noção de risco.

Contudo, é na dimensão preditiva que repousa uma importante tensão. Os modelos preditivos anteriores ao desenvolvimento do princípio da complexidade eram fundamentados em uma estatística frequentista, isto é, operavam predominantemente inferindo padrões com base nos dados extraídos da experiência passada e, desse modo, não conseguiam captar o novo e o inesperado. A aleatoriedade tendia a ser vista não como um elemento constitutivo da realidade, mas como um efeito subjetivo derivado da falta de dados ou de capacidade de processamento do observador. As aplicações práticas baseadas nos sistemas não-lineares promoveram uma transformação ontológica: a aleatoriedade foi incorporada à própria dinâmica da realidade, abalando com isto o naturalismo e o mundo newtoniano. No entanto, a abertura para o inusitado que lhe é subjacente tende a ser obstruída pelas diretrizes gerais que conduzem os dispositivos e agenciamentos de vigilância. Paulo Arantes (O Novo Tempo do Mundo) destacou com bastante precisão o paradoxo desta situação. Exatamente por reconhecer o acaso como elemento decisivo na previsão e, ao mesmo tempo, absolutizar a institucionalidade da sociedade contemporânea (especialmente a conexão íntima entre o capital e a guerra), a gestão preditiva do risco tenta aprisionar o futuro exigindo um presente securitário máximo.

A combinação entre a dissolução das fronteiras entre a dimensão militar e civil e a opacidade inerente aos sistemas preditivos de vigilância criou um novo problema: estes aparatos estão se voltando contra os cidadãos, invadindo praticamente todas as dimensões da vida pública e privada. Além disto, é importante destacar as implicações geopolíticas da guerra centrada na informação e no uso preciso da força em escala global. Poucos são os Estados que possuem capacidade de gestão, recursos humanos, sociotécnicos e econômicos suficientes para tentar explorar esta via, especialmente em uma era de contração econômica generalizada. Neste cenário, portanto, o fosso entre as potências que estão próximas a este limiar tecnológico e os demais países que não conseguem operar no mesmo diapasão tende a aumentar significativamente, o que impõe escolhas difíceis para os países como o nosso.

Eduardo Barros Mariutti – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da UNESP, UNICAMP e PUC-SP e membro da rede de pesquisa PAET&D.

Texto publicado originalmente em: Observatório de Geopolítica do Jornal GGN: Automação da Percepção e rivalidade estratégica (jornalggn.com.br)