Poderá a economia-mundo capitalista sobreviver à ascensão chinesa?

04/04/2023 17:14

por Fábio Pádua dos Santos

O sistema social histórico em que vivemos está em transição. Se será mais livre e igualitário ou se será mais autoritário e hierárquico ainda não sabemos. Mas já é possível afirmar que a elevação da renda média da China está colocando a relação centro-periferia em xeque e com ela a economia-mundo capitalista como conhecemos.

Quando Raúl Prebisch publicou em 1949 o famoso Manifesto Latino-americano, ele estabeleceu as bases teóricas da relação centro-periferia, demonstrando que a propagação desigual do progresso técnico, a deterioração dos termos de troca e a vulnerabilidade externa dos países primário-exportadores resultavam em uma hierarquia de atividades econômicas favorável aos países industrializados.

Immanuel Wallerstein, 25 anos depois, ao publicar o primeiro volume de The Modern World-System, demonstrou que a relação centro-periferia proposta por Prebisch era uma característica fundante da economia-mundo capitalista. Além de ser anterior à Revolução Industrial, ela era estável através do tempo. O sociólogo estadunidense propôs ainda a existência de uma camada intermediária, a semiperiferia, responsável por assegurar o caráter desigual do sistema.

Cético em relação à existência e à estabilidade das três zonas econômicas, Giovanni Arrighi e Jéssica Drangel, em 1986, propuseram uma definição empírica da estratificação mundial da riqueza a partir da apropriação pelos países das rendas globais da divisão mundial do trabalho. Dadas as fontes disponíveis à época, o estudo corroborou para o século XX as contribuições de Prebisch e Wallerstein. Como base nessas evidências, Arrighi propôs que a mobilidade dos países na hierarquia mundial da riqueza era a exceção e não a norma. Nesse sentindo, a industrialização de alguns países periféricos e semiperiféricos poderia ser interpretada como periferização das atividades industriais, pois o comando econômico relativo permaneceu estável para a maioria dos países do globo. A partir disso ele argumentou que em sua grande maioria as experiências de desenvolvimento do século XX foram uma grande ilusão.

Na América Latina, os herdeiros da CEPAL – Comissão Econômica para Desenvolvimento da América Latina e Caribe – não tardaram em revisitar o esquema clássico de Prebisch. Nas décadas de 1980 e 1990, o fracasso das experiências desenvolvimentistas e a crise da dívida externa exigiram que fosse considerado na relação centro-periferia, além da propagação desigual do progresso técnico, os regimes monetários internacionais e a capacidade dos Estados de concentrarem meios de coerção. Apesar de teoricamente intuitivo, a verificação empírica das hierarquias mundiais segue sendo um desafio. Não obstante, isso não impediu que Maria da Conceição Tavares afirmasse em 2010 que não existia mais centro e periferia.

Em 2017, aproveitando novas estimativas de renda e população mundiais, Şahan Karataşlı aplicou a metodologia de Arrighi e Drangel para um período mais longo. As novas evidências por ele encontradas indicam que a estrutura centro-periferia-semiperiferia é muito mais sujeita a mudanças do que se supunha. Essas transformações correspondem de tempos em tempos a revoluções tecnológicas, redistribuição espacial das atividades produtivas, bem como redefinição dos arranjos institucionais, semelhantes ao que Schumpeter denominou de “destruição criadora”.

O ressurgimento da China e o aumento da sua renda per capita levanta uma pergunta: pode a China alterar a hierarquia mundial da riqueza? Os dados sugerem que sim.

Desde 1979 com a política de controle de natalidade, a participação relativa da China na população mundial vem declinando. Por outro lado, a parcela da China sobre a renda mundial saltou de menos de 2% em 1990 para aproximadamente 20% em 2021 (ver Figura 1). Isto significa que nas últimas décadas a China está movendo aproximadamente 1/5 da população mundial para os estratos intermediários da renda mundial.

 

Figura 1 – Participação Relativa da China na População e no Produto Mundial Bruto.

Elaboração: Fábio Pádua dos Santos

Fonte: Banco Mundial (2023)

O efeito deste deslocamento sobre a hierarquia mundial da riqueza pode ser observado quando comparamos em diferentes anos a estratificação da renda.

Sem a China, a hierarquia mundial da riqueza segue o padrão identificado por Arrighi e Drangel segundo o qual a maior parte da população mundial viveria nos estratos inferiores de renda (ver Figura 2a).

Com a China, esse padrão se transforma nas últimas décadas. No imediato pré-pandemia já não é mais possível afirmar que a maior parcela da população mundial vive nos estratos inferiores de renda (ver Figura 2b).

   

Figura 2a – Sem a China

Figura 2b – Com a China

Figura 2 – Estratificação Mundial da Renda

Elaboração: Fábio Pádua dos Santos

Fonte: Banco Mundial (2023)

Ao se tornar a oficina do mundo, a China está conseguindo elevar a renda média de seus cidadãos a despeito de sua gigantesca população e dos desafios internos que ela coloca. Portanto, a relação centro-periferia-semiperiferia não segue estável como imaginou Wallerstein e parece estar se transformando como propôs Tavares.

Qual a implicação dessa transformação estrutural para a ordem mundial? Poderá a economia-mundo capitalista sobreviver à ascensão chinesa? Provavelmente não! A civilização capitalista não foi capaz de generalizar globalmente a liberdade e a igualdade em harmonia com a natureza na qual está apoiada.

A incorporação da China e a consequente elevação da renda média chinesa, combinada com esforços de generalização do padrão de consumo ocidental no Leste da Ásia, têm introduzido pressões por acesso a recursos naturais e por controle tecnológico que alteram a dinâmica do equilíbrio de poder no interior do moderno sistema interestatal.

Isso tem tornado mais complexas as condições para a construção de uma governança global capaz de respeitar a diversidade de povos e modos de vida no mundo. Não obstante, o que estamos observando do lado norte ocidental é a intensificação da rivalidade interestatal cujo desfecho ainda é imprevisível.


Fábio Pádua dos Santos – Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC. E-mail: 

Texto publicado originalmente em: Observatório de Geopolítica do Jornal GGN: Poderá o mundo capitalista sobreviver à ascensão chinesa? (jornalggn.com.br)