A arte na guerra: Abbot Thayer e os princípios da camuflagem

10/04/2023 15:43

por Eduardo Barros Mariutti

A combinação entre maior precisão, poder de dano e alcance dos armamentos contemporâneos demandou o desenvolvimento de táticas eficazes de camuflagem. Contudo, antes do emprego intensivo de cientistas especializados no campo das tecnologias da percepção óptico-eletrônicas, os artistas eram muito demandados pelos militares para este fim Pintores, escultores e cenografistas do teatro são, na realidade, produtores de ilusões. Geram a sensação de profundidade em superfícies planas, criam cenas fictícias com realismo e despertam sensações táteis explorando as formas, as cores e a composição dos materiais que manipulam. Esta habilidade pressupõe o conhecimento tácito (Gilbert Ryle) sobre o modo como opera a percepção humana.

Abbott Thayer (1849-1921) um famoso pintor americano e estudioso das formas de ocultamento empregadas por animais é, reconhecidamente, um dos principais precursores do uso da camuflagem para fins militares. Ele cunhou uma técnica chamada de contrasombreamento (countershadind) que se baseia na inversão dos procedimentos usualmente empregados pelos artistas. Um pintor, por exemplo, explorando o jogo de luz e sombra, é capaz de dar a aparência de solidez a objetos e produzir efeitos tridimensionais em uma tela que só tem duas dimensões. Logo, para camuflar basta inverter o procedimento usual, fazendo com que um objeto tridimensional pareça plano a um observador, tornando-o com isto indistinto do seu meio circundante. Alguns peixes têm uma coloração mais escura na parte superior e mais clara na inferior, dificultando a sua visualização por predadores situados acima e abaixo dele. No primeiro caso é difícil discernir a forma do peixe da água escura ou do fundo. No segundo, a barriga do peixe se mescla com a claridade proveniente da superfície. Thayer desenvolveu a sua técnica combinando a sua experiência nas artes visuais com observações sistemáticas sobre os animais (R.R. Behrens “The Theories of Abbot H. Thayer: father of Camouflage” Leonardo 1988).

Como destaca Roy R. Behrens, Abbot Thayer tinha claro que o ocultamento deriva da relação entre a figura e o fundo. Quanto maior o contraste, mais visível a figura ou o objeto. Tendo isso em mente, ele desenvolveu duas técnicas básicas que, embora usem princípios opostos, podem ser combinadas. Uma forma de ocultamento – blending – envolve copiar no objeto os padrões do meio para torná-lo indistinguível da paisagem. Busca-se exacerbar a similaridade entre a figura e o fundo. Fardas ou veículos com gradações em verde, por exemplo, dificultam a sua identificação em uma floresta. A outra técnica tem como princípio a disrupção, isto é, operar com contrastes extremos e múltiplas formas, gerando uma confusão visual que impede a observação da forma particular do alvo. Algumas borboletas ao pousarem de asas abertas dão a impressão de possuírem dois grandes “olhos” descontínuos, causando confusão em alguns de seus predadores, que não conseguem identificá-la como uma borboleta. Parecem estar defronte um animal muito maior, inidentificável.

Um princípio como este foi usado em navios da I Guerra Mundial, que foram pintados em listras irregulares como a das zebras (dazzle camouflage) para dificultar a tarefa dos artilheiros dos navios inimigos ou dos submarinos. A ideia não é, evidentemente, impedir que o navio seja visto, mas confundir o artilheiro adversário nos combates à distância, pois é necessário atirar um pouco à frente da posição do navio para poder acertá-lo. O padrão zebrado confunde, pois leva muito tempo para se identificar a forma do navio e, portanto, o seu curso. Essa confusão coloca o navio zebrado em vantagem, pois ele poderia alvejar o seu opositor antes dele conseguir atirar.

Essa orientação mais artesanal, contudo, logo entrou em sinergia com a ciência aplicada, que rapidamente ultrapassou o campo da ótica. A aceleração dos aviões na II Guerra Mundial e o aprimoramento do poder de fogo e da furtividade dos submarinos exigiu o desenvolvimento dos radares e dos sonares, transpondo a disputa no campo da percepção para além da faixa discernível pelo sensório humano, mesmo quando auxiliado por próteses ópticas. Desde então o problema da identificação dos alvos e do ocultamento passou a envolver todo o espectro eletromagnético e os demais estímulos identificáveis. O fato é que a lógica do conflito militar colonizou praticamente todas as dimensões da realidade que a ciência é capaz de discernir. A noção de assinaturas múltiplas ganhou proeminência, complicando significativamente a logística da percepção nos conflitos. Um modelo específico de avião que não possui nenhuma técnica furtiva pode ser localizado e identificado de diversos modos. O ronco do motor, o modo peculiar como ele reflete os sinais de radar, sua assinatura térmica etc. Bombardeiros furtivos como o F-117 “Nighthawk” desenvolvido na década de 1980, por exemplo, foram construídos para não gerarem assinaturas facilmente identificáveis pelos principais sistemas antiaéreos em operação. De um modo geral, a furtividade é obtida por dois princípios: não deixar traços identificáveis ou, alternativamente, se passar por outro objeto que seja considerado inofensivo (um pássaro, por exemplo).

Contudo, se é cada vez mais difícil não produzir alguma assinatura, tornou-se cada vez mais frequente usar outra tática, a dissimulação (decoy). Quando um aviador é perseguido por um míssil que se orienta por sensores térmicos, ele pode usar contramedidas, isto é, disparar um artefato que gera uma fonte de calor que confunde o sistema de direcionamento do míssil. O que era antes um alvo discreto, facilmente identificável, se converte em múltiplos alvos ou um grande borrão, reduzindo drasticamente a probabilidade de o míssil abater o avião. Neste caso, a ideia é operar pela saturação, tornando difícil distinguir um alvo “real” de um simulacro. É curioso notar como as táticas furtivas contemporâneas envolvem a atualização dos princípios desenvolvidos em um mundo ainda estruturado predominantemente de forma ótica para um cenário multiespectral, baseado no imbricamento crescente entre os homens e as máquinas perceptivas.

Eduardo Barros Mariutti – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da UNESP, UNICAMP e PUC-SP e membro da rede de pesquisa PAET&D.

Texto publicado originalmente em: Observatório de Geopolítica do Jornal GGN: Abbot Thayer e os princípios da camuflagem, por Eduardo Mariutti (jornalggn.com.br)