As potencialidades mundiais do renminbi estão condicionadas apenas a aspectos sistêmicos

17/04/2023 12:55

por Cinthia Rodrigues de Oliveira

Desde a Revolução Comunista, a China tem implementado uma dinâmica própria de desenvolvimento. A reorientação da estratégia nacional após 1949 respondeu ao longo período em que a China conviveu com as invasões estrangeiras e a guerra civil, que resultaram da incorporação forçada e parcial do país no sistema-mundo capitalista a partir da Guerra do Ópio (1839-1842). Este sistema é regido pela lei da acumulação incessante de capital e pela disputa interestatal, que impulsionam os países a buscarem, constantemente, vantagens competitivas derivadas dos benefícios de obter uma moeda internacionalizada. Assim, as especificidades acerca do processo de internacionalização da moeda chinesa – o Renminbi (RMB) –  podem derivar da forma como se processou a inserção externa da China nesta dinâmica após 1839.

Até a Guerra do Ópio, a civilização chinesa se manteve ao longo de três milênios entre as mais avançadas do mundo. Entretanto, esta centralidade foi eliminada e a China submetida ao chamado “século de humilhação”, que somente foi rompido com a Revolução Comunista em 1949. O Estado revolucionário de Mao Tse-Tung, articulado ao Estado desenvolvimentista de Deng Xiaoping, lançou as bases para a formulação de um modelo de desenvolvimento com características chinesas e, desde então, o governo chinês vem buscando recuperar a condição do país de grande potência perdida desde a Guerra do Ópio. Na medida em que a China se incorporou voluntariamente à economia-mundo capitalista a partir de 1978, o país passou a operar de acordo com a lei de funcionamento deste sistema, o que propiciou – por meio de uma via própria de desenvolvimento – promover uma significativa mudança estrutural. Esta dimensão histórico-mundial é fundamental para compreender o processo de internacionalização do RMB, que, negligenciada, acaba induzindo a uma interpretação limitada acerca dos condicionantes e potencialidades do status mundial do RMB.

Ao promover a mudança estrutural, a China estimula a acumulação de capital e, assim fazendo, avança nas cadeias produtivas de valor e amplia as possibilidades de sua moeda no cenário internacional. Este entendimento deriva da noção de que uma moeda transcende as fronteiras nacionais e se torna internacional à medida que o país emissor se move nas cadeias globais de valor, o que vem ocorrendo na China ao longo de quatro décadas. Cerca de 25% dos dispêndios em P&D no mundo foram realizados pela China em 2020, estando à frente dos Estados Unidos, Japão e União Europeia (UNESCO, 2021). Em 2021, 46,6% dos registros mundiais de patentes ocorreram nos escritórios de propriedade intelectual da China, sendo grande parte delas relacionadas às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) (WIPO, 2023). No ranking mundial de complexidade, em dez anos a China avançou 17 colocações, saindo em 1995 da posição 46ª em termos de sofisticação produtiva para a 29ª em 2005 e 17ª em 2020 (Atlas of Economy Complexity).

A internacionalização do RMB  configura parte deste processo acelerado de mudança estrutural, embora a sua posição no Sistema Monetário Internacional ainda não reflita, integralmente, o poder tecnológico chinês. O status do RMB como moeda de pagamento internacional elevou-se da posição 35ª em 2010 para a 5ª em 2022 (SWIFT, 2022). O comércio mundial liquidado em RMB alcançou o saldo de CNY 2,9 trilhões em 2022 – o equivalente a US$ 427 bilhões –, enquanto os investimentos chineses realizados no estrangeiro em sua própria moeda chegaram a CNY 590 milhões em 2021 (US$ 86 milhões) (CEIC data). Entre 2008 e 2020, ampliaram-se consideravelmente os acordos de swaps cambiais estabelecidos pela China em sua própria moeda e os ativos financeiros domésticos retidos pelo estrangeiro em RMB. Esta tendência tem gerado implicações importantes para o arranjo monetário internacional, como a inclusão do RMB em 2016 na cesta de moedas que compõem os Direitos Especiais de Saque do Fundo Monetário Internacional e sua emersão como um ativo de reserva global.

O aspecto mais polêmico em torno do debate sobre a internacionalização do RMB se concentra na estrutura do sistema financeiro da China – majoritariamente estatal – e nos controles sobre a conta de capital, características incompatíveis com o que, segundo a visão predominante, é requerido para internacionalizar uma moeda. Na visão aqui proposta, tais elementos não se constituem uma barreira às potencialidades mundiais do RMB. Pelo contrário! O sistema financeiro nacional da China e a condução da política macroeconômica doméstica fundamentam o êxito do modelo de desenvolvimento chinês, na medida em que possibilitaram a capitalização das estratégias nacionais, sobretudo no campo tecnológico, e capacitou o país para sustentar uma significativa mudança estrutural ao longo de 40 anos. Sendo assim, um importante ponto que fundamenta a razão pela qual tais características não impedem a internacionalização do RMB seria o papel que o sistema financeiro chinês desempenha na acumulação de capital.

Observe-se que, nesta perspectiva, as potencialidades do RMB passam a estar articuladas aos condicionantes sistêmicos e não a escolhas baseadas, estritamente, em critérios econômicos e políticos. Ao mesmo tempo que as forças que regem a economia-mundo capitalista podem impedir que o RMB avance em seu processo de internacionalização – porque os privilégios da moeda internacionalizada também estão em disputa e outras moedas eventualmente podem se internacionalizar –, estas mesmas forças também podem impulsionar o processo de internacionalização do RMB. No horizonte visível, está cada vez mais claro que o RMB continuará avançando nesse processo para além de uma moeda regional. Os acordos realizado recentemente entre o Brasil e a China, que dispensam a intermediação do dólar nas transações entre ambos os países, é um grande indicativo desta tendência.


Cinthia Rodrigues de Oliveira – Doutora em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Pós-doutoranda no Departamento de Economia da UFF. Coordenadora discente do Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB/UFF) e membro do Núcleo de Pesquisa em Indústria, Energia, Território e Inovação (NIETI – UFF).

Texto publicado originalmente em: Observatório de Geopolítica do Jornal GGN: As potencialidades do renminbi estão condicionadas a aspectos si (jornalggn.com.br)