A desruralização na China e a relação centro-periferia
por Fábio Pádua dos Santos
Quando Raúl Prebisch (1986 [1949]) publicou o famoso Manifesto Latino-americano, ele estabeleceu as bases teóricas da relação centro-periferia, demonstrando que a propagação desigual do progresso técnico, a deterioração dos termos de troca e a vulnerabilidade externa dos países primário-exportadores resultavam em uma hierarquia de atividades econômicas favorável aos países industrializados.
Immanuel Wallerstein (1974), 25 anos depois, ao publicar o primeiro volume de The Modern World-System, demonstrou que a relação centro-periferia proposta por Prebisch era uma característica fundante da economia-mundo capitalista. Além de ser anterior à Revolução Industrial, ela era estável através do tempo. Wallerstein propôs ainda a existência de uma camada intermediária, a semiperiferia, responsável por assegurar e reproduzir o caráter desigual do sistema. Portanto, a economia-mundo capitalista teria três zonas, e não duas como propusera Prebisch.
Cético em relação à existência e à estabilidade das três zonas econômicas, Giovanni Arrighi e Jéssica Drangel (1986) propuseram uma definição empírica da estratificação mundial da riqueza, analisando a apropriação das rendas globais pelos países. O estudo corroborou para o século XX as contribuições de Prebisch e Wallerstein. Com base nessas evidências, Arrighi (1990) propôs que a mobilidade dos países na hierarquia mundial da riqueza era a exceção, e que a industrialização de alguns países periféricos e semiperiféricos poderia ser interpretada como periferização das atividades industriais, já que o comando econômico relativo permaneceu estável para a maioria.
Na América Latina, os herdeiros da CEPAL não tardaram em revisitar o esquema clássico de Prebisch. Nas décadas de 1980 e 1990, o fracasso das experiências desenvolvimentistas e a crise da dívida externa exigiram que na relação centro-periferia, além da propagação desigual do progresso técnico, fosse considerado os regimes monetários internacionais e a capacidade dos Estados de concentrarem meios de coerção. Isso levou Maria da Conceição Tavares (2010; 2017) a afirmar que não existia mais centro e periferia.
Şahan Karataşlı (2017), utilizando novas estimativas de renda e população, aplicou a metodologia de Arrighi e Drangel para um período mais longo. Suas evidências indicam que a estrutura centro-periferia-semiperiferia é mais dinâmica do que se imaginava, com transformações impulsionadas por revoluções tecnológicas, redistribuição das atividades produtivas e redefinição dos arranjos institucionais, semelhantes à “destruição criadora” de Schumpeter. A ascensão da China parece representar outro fator desestabilizador da estrutura tripartite.
De fato, as evidências indicam que o aumento da renda per capita da China tem alterado a hierarquia mundial da riqueza. Como mostra a Figura 1, desde 1979, com a política de controle de natalidade, a participação relativa da China na população mundial tem diminuído, enquanto sua participação na renda mundial aumentou de menos de 2% em 1990 para cerca de 20% em 2020, movendo aproximadamente 1/5 da população mundial para os estratos intermediários da renda global.
Figura 1 — Participação Relativa da China na População Mundial e no Produto Mundial Bruto.

O impacto desse deslocamento na hierarquia mundial da riqueza pode ser observado na Figura 2, que mostra a estratificação da renda em diferentes anos. Sem considerar a China (Figura 2a), a hierarquia segue o padrão trimodal identificado por Arrighi e Drangel, com a maior parte da população mundial permanecendo nos estratos inferiores. Quando a China é incluída, esse padrão é alterado devido a uma maior parte da população mundial se deslocar para os estratos intermediários. Como se pode observar na Figura 2b, isso tem feito com que a distribuição deixe de ser trimodal. Para uma discussão sobre esse ponto ver Marilyn Grell-Brisk (2017) e Xing Li (2021).
Figura 2 — Estratificação Mundial da Riqueza


Ao se tornar a “oficina do mundo”, apesar de sua enorme população e dos desafios internos, a China tem elevado a renda média de seus cidadãos. Como consequência, a relação centro-periferia-semiperiferia deixa de seguir o padrão estável imaginado por Wallerstein. Não obstante, quando se analisa a distribuição mundial do emprego, é possível observar transformações estruturais que reforçam a tendência secular à desruralização apontada por Wallerstein (2011; 2004).
Tabela 1 — Número de empregados por atividade econômica (em milhões)

Como mostra a Tabela 1, nas últimas três décadas, a China expandiu seu mercado de trabalho em 16,7%, mas destruiu 55,8% dos empregos nos setores de agricultura, silvicultura e pesca. Como resultado, sua participação no emprego mundial nesses setores caiu de 40% em 1991 para 19% em 2022, o que equivale a 214,5 milhões de postos de trabalho, ou à população do Brasil. Curiosamente, essa desruralização não foi acompanhada por uma maior especialização da estrutura ocupacional chinesa em relação às ocupações mundiais. Pelo contrário, a China melhorou sua posição em diversos setores ao mesmo tempo em que conseguiu diversificar ainda mais sua estrutura produtiva.
Quais as implicações da desruralização chinesa sobre as condições de reprodução geral da economia-mundo capitalista? Esse processo pode ser interpretado como uma dinâmica socioespacial da economia-mundo capitalista que envolve decisões de deslocamentos fabris, a estrutura demográfica dos países periféricos e a formação do mercado de trabalho nessas zonas. Desde os anos 1980, a realocação produtiva tem buscado países onde a população rural não estava integrada ao regime de assalariamento, criando possibilidades de proletarização que reduziram os custos de remuneração e compensaram a queda da taxa de lucro nos países centrais. Por outro lado, para os camponeses, esse deslocamento significou um aumento real relativo da renda familiar. Assim, a destruição do emprego rural na China revela uma das últimas fronteiras para a compensação da taxa de lucro capitalista por meio da proletarização.
No longo prazo, sabe-se que a formação de mercado de trabalho assalariado tende a engendrar formas de organização trabalhistas que pressionam por melhores salários, pressionando para cima os custos de remuneração. Dada a população chinesa (1,4 bilhão de habitantes), sua desruralização equivale a restringir as possibilidades de redução global do custo de mão de obra no longo prazo, pressionando para baixo as taxas de lucro. Independentemente de a atual condição semiperiférica da China estar se estabilizando ou ser uma etapa rumo ao centro do sistema-mundo, o processo de elevação da renda per capita na China marca uma época de transição.
Referências
Arrighi, Giovanni. 1990. “The developmentalist illusion: A reconceptualization of the semiperiphery”. Semiperipheral states in the world-economy, 11–42.
Arrighi, Giovanni, e Jessica Drangel. 1986. “The Stratification of the World-Economy: An Exploration of the Semiperipheral Zone”. Review (Fernand Braudel Center) 10 (1): 9–74.
Grell-Brisk, Marilyn. 2017. “China and Global Economic Stratification in an Interdependent World”. Palgrave Communications 3 (1): 17087. https://doi.org/10.1057/palcomms.2017.87.
International Labour Organization. 2024. “ILO modelled estimates database”. https://ilostat.ilo.org/data/.
Karataşlı, Şahan Savaş. 2017. “The Capitalist World-Economy in the Longue Durée”. Sociology of Development 3 (2): 163–96. https://doi.org/10.1525/sod.2017.3.2.163.
Li, Xing. 2021. “The Rise of China and Its Impact on World Economic Stratification and Re-Stratification”. Cambridge Review of International Affairs 34 (4): 530–50. https://doi.org/10.1080/09557571.2020.1800589.
Prebisch, Raúl. 1986. “El desarrollo económico de la América Latina y algunos de sus principales problemas”. Desarrollo Económico 26 (103): 479–502.
Tavares, Maria da Conceição. 2010. Não tem mais centro e periferia. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/797136-nao-tem-mais-centro-e-periferia-afirma-maria-da-conceicao.shtml.
Tavares, Maria da Conceição, e José Luís (orgs.) Fiori. 2017. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis, RJ: Vozes.
Wallerstein, Immanuel. 2011. “Structural Crisis in the World-System: Where Do We Go from Here?” Monthly Review 62 (10): 31. https://doi.org/10.14452/MR-062-10-2011-03_2.
Wallerstein, Immanuel Maurice. 1974. Capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century (The Modern World-System Vol.I). New York : Academic Press,.
— — — . 2004. World-systems analysis: an introduction. Durham: Duke University Press.
Texto originalmente publicado em: Revista Mundorama.