XVIII Colóquio Brasileiro em EPSM – lista de resumos expandidos aceitos

21/08/2024 08:48

A organização do XVIII Colóquio Brasileiro em EPSM divulga a lista dos resumos expandidos selecionados para apresentação.

Solicitamos que os autores atentem para o prazo de envio do trabalho completo: 30.09.2024

RESUMOS EXPANDIDOS ACEITOS

A política externa egípcia sob o governo Al-Sisi: caminhos para a diversificação de parcerias

A transição sistêmica da economia-mundo capitalista e as agitações trabalhistas nos centros de acumulação: tendências comparativas entre EUA e China

Mundo em transformação: o papel do BRICS no atual sistema agroalimentar internacional

A Guerra da Ucrânia como imperativo antissistêmico e suas consequências geopolíticas: o aumento da influência do BRICS

Transição hegemônica no sistema-mundo: o declínio dos EUA e a ascensão da China na África

Sistema-Mundo e cadeia global de valor da soja: uma análise do posicionamento brasileiro no século XXI

A parceria sino-russa no Século XXI e a crise na Ucrânia

Espoliação ou desenvolvimento associado? A dinâmica da União Soviética com o Comecon (1949-1985)

Estados Unidos e China: um estudo comparativo sobre a ascensão de grandes potências no sistema-mundo moderno

O Brasil, a China e o regime alimentar neoliberal/corporativo em crise: uma introdução

As relações centro-periferia no sistema-mundo moderno: uma análise introdutória da crise na região dos Grandes Lagos

Centro e semiperiferia nas cadeias globais de valor da indústria 4.0: as trajetórias divergentes de Coréia do Sul e Brasil

A disputa hegemônica e a transição de poder entre China e Estados Unidos: os casos de Israel e da Arábia Saudita

 Transformações na indústria automobilística brasileira: impactos do avanço chinês para o Mercosul

 Cooperação entre os países em desenvolvimento: Brasil – PALOP

Ascensão ou estagnação? A evolução das posições da América Latina e do Sudeste Asiático no sistema-mundo moderno

A década de 90 no Brasil: uma gota no oceano da hegemonia do sistema-mundo

Transições de poder e riqueza no sistema-mundo moderno e a disputa Estados Unidos – China pela liderança global e por influência na periferia mundial

Dinâmicas sino-brasileiras no cenário global: vantagens comparativas e impacto regional à luz do sistema-mundo

Cadeias globais de valor o Sul Global: o declínio do sistema-mundo neoliberal e a ilusão de um novo paradigma hegemônico

O modelo comportamental de inserção e projeção internacional de grandes potências: uma análise a partir das abordagens chinesas e suas contribuições para o sistema-mundo

Centralização e Descentralizacão no Campo de Batalha: os Estados Unidos e a guerra na era da informação

03/05/2023 16:58

por Eduardo Barros Mariutti

A tensão entre a centralização e a descentralização do comando sobre a guerra é uma característica importante do sistema-mundo moderno. Há períodos em que preponderam a centralização e a hierarquia por oposição a formas mais descentralizadas de conduta da guerra. Neste caso, além da pressão pela interoperalidade entre as forças, para poder explorar vantagens táticas que se revelam no calor dos acontecimentos, as unidades de combate tendem a ganhar muito mais autonomia. Essa forma mais descentralizada de conduta da guerra, entretanto, complica a gestão da cadeia de informações que perpassa o campo de batalha. A concepção mecânica de guerra centrada na noção de feedback negativo cede lugar a conceitos como não-linearidade, auto-organização e emergência.

Esta tensão se sobrelevou durante a Guerra Fria. As décadas de 1950 e 60 foram marcadas pela cristalização de vastos complexos de comando e controle que, embora tecnicamente capazes de operar de forma descentralizada, dependiam de um comando central para gerir o sistema, especialmente no que diz respeito aos armamentos nucleares. E, além disso, todo o arcabouço era organizado de acordo com uma estratégia geral pensada no antagonismo com sociedades urbano-industriais baseadas em uma forma de combate similar. No entanto, a Guerra do Vietnã mostrou que este modo de organização era ineficaz contra um inimigo mais frágil, mas que lutava no seu próprio território usando táticas de guerrilha. A derrota de Washington não colocou em xeque a ênfase na busca da superioridade tecnológica, mas lançou dúvidas sobre a eficácia do tipo de planejamento muito centralizado que organizou a ofensiva contra os vietcongues.

O fato é que a integração cibernética entre veículos, projéteis, comunicações, radar e contra-medidas eletrônicas que deu o tom do cenário da Guerra Fria entrou em simbiose com as transformações no desenho dos projetos militares e da própria base produtiva da economia estadunidense. A ideia de projetar armas de forma discreta deu lugar à criação de sistemas de armamentos que não podiam ser planejados separadamente, isto é, fora de um todo que os integre (Antoine Bousquet – The Scientific way of warfare). Tais sistemas espelham uma estrutura produtiva organizada pelos princípios do taylorismo, isto é, suscetível a microgerenciamentos capazes de responder tanto às pressões militares inesperadas quanto às oscilações das demandas civis.

No entanto, a despeito de toda a retórica, os EUA ainda possuem como viga mestra de seu sistema de defesa uma orientação centrada na grande estratégia, destinada a prevenir a formação de hegemonias regionais e orientada essencialmente na contenção pela dissuasão nuclear de potências militares apoiadas no imbricamento entre a indústria e sofisticados sistemas de inovação. Porém, desde a década de 1990, quando a suposta necessidade de “mudar regimes” se combinou com a alegada luta contra o terror, os EUA começaram a implementar uma organização militar mais híbrida, capaz de preservar a preeminência no campo da dissuasão nuclear com a superioridade em intervenções tópicas com armamentos convencionais contra Estados adversários e em conflitos de baixa intensidade contra forças hostis não estatais, uma combinação supostamente mais próxima dos princípios da teoria do caos e propagandeada como “network-centric warfare”.

Como já foi apontado nas colunas anteriores, a tendência dominante tem sido a combinação entre a automação da percepção e os sistemas de projeção remota de dano que combinam a granularidade da seleção de alvos com um alcance cada vez mais global. Contudo, é importante destacar o caráter heteróclito destes agenciamentos. Eles se consubstanciam muito mais pela convergência fugaz – embora pontuada por zonas de tensão – entre sistemas de vigilância e controle discretos do que por formas mais centralizadas de comando, tal como ocorre no panóptico e nas visões distópicas influenciadas por George Orwell. Não há um centro, não existem zonas estáveis. Como destaca Antoine Bousquet (The Eye of War), por meio da decomposição dos corpos e dos fluxos em informação manipulável, estamos testemunhando a emergência de um complexo de vigilância e de projeção de poder que perpassa os aparelhos do Estado e as instituições não-estatais de forma rizomática, formando “coletivos heterogêneos de entidades que atravessam os estratos orgânicos, mecânicos e sociais da realidade.” Este cenário exige uma mudança radical na forma como se concebe a geopolítica: a dimensão informacional da realidade está no centro tanto da disputa estratégica no sistema interestatal quanto da rivalidade intercapitalista.

Eduardo Barros Mariutti – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da UNESP, UNICAMP e PUC-SP e membro da rede de pesquisa PAET&D.

Texto publicado originalmente em: Observatório de Geopolítica do Jornal GGN: Os EUA e a guerra na era da informação, por Eduardo Mariutti (jornalggn.com.br)

As potencialidades mundiais do renminbi estão condicionadas apenas a aspectos sistêmicos

17/04/2023 12:55

por Cinthia Rodrigues de Oliveira

Desde a Revolução Comunista, a China tem implementado uma dinâmica própria de desenvolvimento. A reorientação da estratégia nacional após 1949 respondeu ao longo período em que a China conviveu com as invasões estrangeiras e a guerra civil, que resultaram da incorporação forçada e parcial do país no sistema-mundo capitalista a partir da Guerra do Ópio (1839-1842). Este sistema é regido pela lei da acumulação incessante de capital e pela disputa interestatal, que impulsionam os países a buscarem, constantemente, vantagens competitivas derivadas dos benefícios de obter uma moeda internacionalizada. Assim, as especificidades acerca do processo de internacionalização da moeda chinesa – o Renminbi (RMB) –  podem derivar da forma como se processou a inserção externa da China nesta dinâmica após 1839.

Até a Guerra do Ópio, a civilização chinesa se manteve ao longo de três milênios entre as mais avançadas do mundo. Entretanto, esta centralidade foi eliminada e a China submetida ao chamado “século de humilhação”, que somente foi rompido com a Revolução Comunista em 1949. O Estado revolucionário de Mao Tse-Tung, articulado ao Estado desenvolvimentista de Deng Xiaoping, lançou as bases para a formulação de um modelo de desenvolvimento com características chinesas e, desde então, o governo chinês vem buscando recuperar a condição do país de grande potência perdida desde a Guerra do Ópio. Na medida em que a China se incorporou voluntariamente à economia-mundo capitalista a partir de 1978, o país passou a operar de acordo com a lei de funcionamento deste sistema, o que propiciou – por meio de uma via própria de desenvolvimento – promover uma significativa mudança estrutural. Esta dimensão histórico-mundial é fundamental para compreender o processo de internacionalização do RMB, que, negligenciada, acaba induzindo a uma interpretação limitada acerca dos condicionantes e potencialidades do status mundial do RMB.

Ao promover a mudança estrutural, a China estimula a acumulação de capital e, assim fazendo, avança nas cadeias produtivas de valor e amplia as possibilidades de sua moeda no cenário internacional. Este entendimento deriva da noção de que uma moeda transcende as fronteiras nacionais e se torna internacional à medida que o país emissor se move nas cadeias globais de valor, o que vem ocorrendo na China ao longo de quatro décadas. Cerca de 25% dos dispêndios em P&D no mundo foram realizados pela China em 2020, estando à frente dos Estados Unidos, Japão e União Europeia (UNESCO, 2021). Em 2021, 46,6% dos registros mundiais de patentes ocorreram nos escritórios de propriedade intelectual da China, sendo grande parte delas relacionadas às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) (WIPO, 2023). No ranking mundial de complexidade, em dez anos a China avançou 17 colocações, saindo em 1995 da posição 46ª em termos de sofisticação produtiva para a 29ª em 2005 e 17ª em 2020 (Atlas of Economy Complexity).

A internacionalização do RMB  configura parte deste processo acelerado de mudança estrutural, embora a sua posição no Sistema Monetário Internacional ainda não reflita, integralmente, o poder tecnológico chinês. O status do RMB como moeda de pagamento internacional elevou-se da posição 35ª em 2010 para a 5ª em 2022 (SWIFT, 2022). O comércio mundial liquidado em RMB alcançou o saldo de CNY 2,9 trilhões em 2022 – o equivalente a US$ 427 bilhões –, enquanto os investimentos chineses realizados no estrangeiro em sua própria moeda chegaram a CNY 590 milhões em 2021 (US$ 86 milhões) (CEIC data). Entre 2008 e 2020, ampliaram-se consideravelmente os acordos de swaps cambiais estabelecidos pela China em sua própria moeda e os ativos financeiros domésticos retidos pelo estrangeiro em RMB. Esta tendência tem gerado implicações importantes para o arranjo monetário internacional, como a inclusão do RMB em 2016 na cesta de moedas que compõem os Direitos Especiais de Saque do Fundo Monetário Internacional e sua emersão como um ativo de reserva global.

O aspecto mais polêmico em torno do debate sobre a internacionalização do RMB se concentra na estrutura do sistema financeiro da China – majoritariamente estatal – e nos controles sobre a conta de capital, características incompatíveis com o que, segundo a visão predominante, é requerido para internacionalizar uma moeda. Na visão aqui proposta, tais elementos não se constituem uma barreira às potencialidades mundiais do RMB. Pelo contrário! O sistema financeiro nacional da China e a condução da política macroeconômica doméstica fundamentam o êxito do modelo de desenvolvimento chinês, na medida em que possibilitaram a capitalização das estratégias nacionais, sobretudo no campo tecnológico, e capacitou o país para sustentar uma significativa mudança estrutural ao longo de 40 anos. Sendo assim, um importante ponto que fundamenta a razão pela qual tais características não impedem a internacionalização do RMB seria o papel que o sistema financeiro chinês desempenha na acumulação de capital.

Observe-se que, nesta perspectiva, as potencialidades do RMB passam a estar articuladas aos condicionantes sistêmicos e não a escolhas baseadas, estritamente, em critérios econômicos e políticos. Ao mesmo tempo que as forças que regem a economia-mundo capitalista podem impedir que o RMB avance em seu processo de internacionalização – porque os privilégios da moeda internacionalizada também estão em disputa e outras moedas eventualmente podem se internacionalizar –, estas mesmas forças também podem impulsionar o processo de internacionalização do RMB. No horizonte visível, está cada vez mais claro que o RMB continuará avançando nesse processo para além de uma moeda regional. Os acordos realizado recentemente entre o Brasil e a China, que dispensam a intermediação do dólar nas transações entre ambos os países, é um grande indicativo desta tendência.


Cinthia Rodrigues de Oliveira – Doutora em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Pós-doutoranda no Departamento de Economia da UFF. Coordenadora discente do Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB/UFF) e membro do Núcleo de Pesquisa em Indústria, Energia, Território e Inovação (NIETI – UFF).

Texto publicado originalmente em: Observatório de Geopolítica do Jornal GGN: As potencialidades do renminbi estão condicionadas a aspectos si (jornalggn.com.br)

A arte na guerra: Abbot Thayer e os princípios da camuflagem

10/04/2023 15:43

por Eduardo Barros Mariutti

A combinação entre maior precisão, poder de dano e alcance dos armamentos contemporâneos demandou o desenvolvimento de táticas eficazes de camuflagem. Contudo, antes do emprego intensivo de cientistas especializados no campo das tecnologias da percepção óptico-eletrônicas, os artistas eram muito demandados pelos militares para este fim Pintores, escultores e cenografistas do teatro são, na realidade, produtores de ilusões. Geram a sensação de profundidade em superfícies planas, criam cenas fictícias com realismo e despertam sensações táteis explorando as formas, as cores e a composição dos materiais que manipulam. Esta habilidade pressupõe o conhecimento tácito (Gilbert Ryle) sobre o modo como opera a percepção humana.

Abbott Thayer (1849-1921) um famoso pintor americano e estudioso das formas de ocultamento empregadas por animais é, reconhecidamente, um dos principais precursores do uso da camuflagem para fins militares. Ele cunhou uma técnica chamada de contrasombreamento (countershadind) que se baseia na inversão dos procedimentos usualmente empregados pelos artistas. Um pintor, por exemplo, explorando o jogo de luz e sombra, é capaz de dar a aparência de solidez a objetos e produzir efeitos tridimensionais em uma tela que só tem duas dimensões. Logo, para camuflar basta inverter o procedimento usual, fazendo com que um objeto tridimensional pareça plano a um observador, tornando-o com isto indistinto do seu meio circundante. Alguns peixes têm uma coloração mais escura na parte superior e mais clara na inferior, dificultando a sua visualização por predadores situados acima e abaixo dele. No primeiro caso é difícil discernir a forma do peixe da água escura ou do fundo. No segundo, a barriga do peixe se mescla com a claridade proveniente da superfície. Thayer desenvolveu a sua técnica combinando a sua experiência nas artes visuais com observações sistemáticas sobre os animais (R.R. Behrens “The Theories of Abbot H. Thayer: father of Camouflage” Leonardo 1988).

Como destaca Roy R. Behrens, Abbot Thayer tinha claro que o ocultamento deriva da relação entre a figura e o fundo. Quanto maior o contraste, mais visível a figura ou o objeto. Tendo isso em mente, ele desenvolveu duas técnicas básicas que, embora usem princípios opostos, podem ser combinadas. Uma forma de ocultamento – blending – envolve copiar no objeto os padrões do meio para torná-lo indistinguível da paisagem. Busca-se exacerbar a similaridade entre a figura e o fundo. Fardas ou veículos com gradações em verde, por exemplo, dificultam a sua identificação em uma floresta. A outra técnica tem como princípio a disrupção, isto é, operar com contrastes extremos e múltiplas formas, gerando uma confusão visual que impede a observação da forma particular do alvo. Algumas borboletas ao pousarem de asas abertas dão a impressão de possuírem dois grandes “olhos” descontínuos, causando confusão em alguns de seus predadores, que não conseguem identificá-la como uma borboleta. Parecem estar defronte um animal muito maior, inidentificável.

Um princípio como este foi usado em navios da I Guerra Mundial, que foram pintados em listras irregulares como a das zebras (dazzle camouflage) para dificultar a tarefa dos artilheiros dos navios inimigos ou dos submarinos. A ideia não é, evidentemente, impedir que o navio seja visto, mas confundir o artilheiro adversário nos combates à distância, pois é necessário atirar um pouco à frente da posição do navio para poder acertá-lo. O padrão zebrado confunde, pois leva muito tempo para se identificar a forma do navio e, portanto, o seu curso. Essa confusão coloca o navio zebrado em vantagem, pois ele poderia alvejar o seu opositor antes dele conseguir atirar.

Essa orientação mais artesanal, contudo, logo entrou em sinergia com a ciência aplicada, que rapidamente ultrapassou o campo da ótica. A aceleração dos aviões na II Guerra Mundial e o aprimoramento do poder de fogo e da furtividade dos submarinos exigiu o desenvolvimento dos radares e dos sonares, transpondo a disputa no campo da percepção para além da faixa discernível pelo sensório humano, mesmo quando auxiliado por próteses ópticas. Desde então o problema da identificação dos alvos e do ocultamento passou a envolver todo o espectro eletromagnético e os demais estímulos identificáveis. O fato é que a lógica do conflito militar colonizou praticamente todas as dimensões da realidade que a ciência é capaz de discernir. A noção de assinaturas múltiplas ganhou proeminência, complicando significativamente a logística da percepção nos conflitos. Um modelo específico de avião que não possui nenhuma técnica furtiva pode ser localizado e identificado de diversos modos. O ronco do motor, o modo peculiar como ele reflete os sinais de radar, sua assinatura térmica etc. Bombardeiros furtivos como o F-117 “Nighthawk” desenvolvido na década de 1980, por exemplo, foram construídos para não gerarem assinaturas facilmente identificáveis pelos principais sistemas antiaéreos em operação. De um modo geral, a furtividade é obtida por dois princípios: não deixar traços identificáveis ou, alternativamente, se passar por outro objeto que seja considerado inofensivo (um pássaro, por exemplo).

Contudo, se é cada vez mais difícil não produzir alguma assinatura, tornou-se cada vez mais frequente usar outra tática, a dissimulação (decoy). Quando um aviador é perseguido por um míssil que se orienta por sensores térmicos, ele pode usar contramedidas, isto é, disparar um artefato que gera uma fonte de calor que confunde o sistema de direcionamento do míssil. O que era antes um alvo discreto, facilmente identificável, se converte em múltiplos alvos ou um grande borrão, reduzindo drasticamente a probabilidade de o míssil abater o avião. Neste caso, a ideia é operar pela saturação, tornando difícil distinguir um alvo “real” de um simulacro. É curioso notar como as táticas furtivas contemporâneas envolvem a atualização dos princípios desenvolvidos em um mundo ainda estruturado predominantemente de forma ótica para um cenário multiespectral, baseado no imbricamento crescente entre os homens e as máquinas perceptivas.

Eduardo Barros Mariutti – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da UNESP, UNICAMP e PUC-SP e membro da rede de pesquisa PAET&D.

Texto publicado originalmente em: Observatório de Geopolítica do Jornal GGN: Abbot Thayer e os princípios da camuflagem, por Eduardo Mariutti (jornalggn.com.br)

Poderá a economia-mundo capitalista sobreviver à ascensão chinesa?

04/04/2023 17:14

por Fábio Pádua dos Santos

O sistema social histórico em que vivemos está em transição. Se será mais livre e igualitário ou se será mais autoritário e hierárquico ainda não sabemos. Mas já é possível afirmar que a elevação da renda média da China está colocando a relação centro-periferia em xeque e com ela a economia-mundo capitalista como conhecemos.

Quando Raúl Prebisch publicou em 1949 o famoso Manifesto Latino-americano, ele estabeleceu as bases teóricas da relação centro-periferia, demonstrando que a propagação desigual do progresso técnico, a deterioração dos termos de troca e a vulnerabilidade externa dos países primário-exportadores resultavam em uma hierarquia de atividades econômicas favorável aos países industrializados.

Immanuel Wallerstein, 25 anos depois, ao publicar o primeiro volume de The Modern World-System, demonstrou que a relação centro-periferia proposta por Prebisch era uma característica fundante da economia-mundo capitalista. Além de ser anterior à Revolução Industrial, ela era estável através do tempo. O sociólogo estadunidense propôs ainda a existência de uma camada intermediária, a semiperiferia, responsável por assegurar o caráter desigual do sistema.

Cético em relação à existência e à estabilidade das três zonas econômicas, Giovanni Arrighi e Jéssica Drangel, em 1986, propuseram uma definição empírica da estratificação mundial da riqueza a partir da apropriação pelos países das rendas globais da divisão mundial do trabalho. Dadas as fontes disponíveis à época, o estudo corroborou para o século XX as contribuições de Prebisch e Wallerstein. Como base nessas evidências, Arrighi propôs que a mobilidade dos países na hierarquia mundial da riqueza era a exceção e não a norma. Nesse sentindo, a industrialização de alguns países periféricos e semiperiféricos poderia ser interpretada como periferização das atividades industriais, pois o comando econômico relativo permaneceu estável para a maioria dos países do globo. A partir disso ele argumentou que em sua grande maioria as experiências de desenvolvimento do século XX foram uma grande ilusão.

Na América Latina, os herdeiros da CEPAL – Comissão Econômica para Desenvolvimento da América Latina e Caribe – não tardaram em revisitar o esquema clássico de Prebisch. Nas décadas de 1980 e 1990, o fracasso das experiências desenvolvimentistas e a crise da dívida externa exigiram que fosse considerado na relação centro-periferia, além da propagação desigual do progresso técnico, os regimes monetários internacionais e a capacidade dos Estados de concentrarem meios de coerção. Apesar de teoricamente intuitivo, a verificação empírica das hierarquias mundiais segue sendo um desafio. Não obstante, isso não impediu que Maria da Conceição Tavares afirmasse em 2010 que não existia mais centro e periferia.

Em 2017, aproveitando novas estimativas de renda e população mundiais, Şahan Karataşlı aplicou a metodologia de Arrighi e Drangel para um período mais longo. As novas evidências por ele encontradas indicam que a estrutura centro-periferia-semiperiferia é muito mais sujeita a mudanças do que se supunha. Essas transformações correspondem de tempos em tempos a revoluções tecnológicas, redistribuição espacial das atividades produtivas, bem como redefinição dos arranjos institucionais, semelhantes ao que Schumpeter denominou de “destruição criadora”.

O ressurgimento da China e o aumento da sua renda per capita levanta uma pergunta: pode a China alterar a hierarquia mundial da riqueza? Os dados sugerem que sim.

Desde 1979 com a política de controle de natalidade, a participação relativa da China na população mundial vem declinando. Por outro lado, a parcela da China sobre a renda mundial saltou de menos de 2% em 1990 para aproximadamente 20% em 2021 (ver Figura 1). Isto significa que nas últimas décadas a China está movendo aproximadamente 1/5 da população mundial para os estratos intermediários da renda mundial.

 

Figura 1 – Participação Relativa da China na População e no Produto Mundial Bruto.

Elaboração: Fábio Pádua dos Santos

Fonte: Banco Mundial (2023)

O efeito deste deslocamento sobre a hierarquia mundial da riqueza pode ser observado quando comparamos em diferentes anos a estratificação da renda.

Sem a China, a hierarquia mundial da riqueza segue o padrão identificado por Arrighi e Drangel segundo o qual a maior parte da população mundial viveria nos estratos inferiores de renda (ver Figura 2a).

Com a China, esse padrão se transforma nas últimas décadas. No imediato pré-pandemia já não é mais possível afirmar que a maior parcela da população mundial vive nos estratos inferiores de renda (ver Figura 2b).

   

Figura 2a – Sem a China

Figura 2b – Com a China

Figura 2 – Estratificação Mundial da Renda

Elaboração: Fábio Pádua dos Santos

Fonte: Banco Mundial (2023)

Ao se tornar a oficina do mundo, a China está conseguindo elevar a renda média de seus cidadãos a despeito de sua gigantesca população e dos desafios internos que ela coloca. Portanto, a relação centro-periferia-semiperiferia não segue estável como imaginou Wallerstein e parece estar se transformando como propôs Tavares.

Qual a implicação dessa transformação estrutural para a ordem mundial? Poderá a economia-mundo capitalista sobreviver à ascensão chinesa? Provavelmente não! A civilização capitalista não foi capaz de generalizar globalmente a liberdade e a igualdade em harmonia com a natureza na qual está apoiada.

A incorporação da China e a consequente elevação da renda média chinesa, combinada com esforços de generalização do padrão de consumo ocidental no Leste da Ásia, têm introduzido pressões por acesso a recursos naturais e por controle tecnológico que alteram a dinâmica do equilíbrio de poder no interior do moderno sistema interestatal.

Isso tem tornado mais complexas as condições para a construção de uma governança global capaz de respeitar a diversidade de povos e modos de vida no mundo. Não obstante, o que estamos observando do lado norte ocidental é a intensificação da rivalidade interestatal cujo desfecho ainda é imprevisível.


Fábio Pádua dos Santos – Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC. E-mail: 

Texto publicado originalmente em: Observatório de Geopolítica do Jornal GGN: Poderá o mundo capitalista sobreviver à ascensão chinesa? (jornalggn.com.br)

Inteligência Artificial Simbólica e Conexionista

03/04/2023 16:26

por Eduardo Barros Mariutti

O sistema-mundo moderno tem como uma de suas principais características o entrecruzamento entre a rivalidade interestatal e a concorrência intercapitalista. As pressões competitivas que quem emanam do capital e da rivalidade estratégica favorecem uma postura pragmática por parte dos atores: é muito comum realizar tarefas e desenvolver produtos sem que se compreenda exatamente como eles funcionam. Basta que, de um ponto de vista instrumental, a engenhoca ou o procedimento funcione. A explicação racional e científica fica para depois. Paul Cilliers(Complexity & Postmodernism) desenvolve com maestria essa ideia ao destacar que manipulamos genes (gene splicing) sem entender plenamente como eles interagem, assim como a indústria farmacêutica produz fármacos sem dominar com clareza o modo como eles funcionam e quais são seus efeitos colaterais. Isso para não falar de um exemplo clássico: as máquinas a vapor foram construídas por homens práticos e só muito tempo depois surgiu a termodinâmica que, como se sabe, transformou radicalmente a física teórica (Manuel De Landa, War in the age of intelligent Machines).

Com a inteligência artificial (IA) isto não é diferente. Para simplificar, podemos dizer que este ramo é baseado na disputa entre duas grandes tradições: a simbólica e a conexionista. A primeira é a mais antiga e opera com a noção de que inteligência é a capacidade de manipular símbolos que representam o mundo e as diversas experiências fenomenológicas que vivenciamos. Esta manipulação se concretiza por meio de inferências lógicas derivadas de um conjunto de regras formais que delimitam o que é e o que não é permissível. Há aqui pelo menos dois pressupostos: i) a inteligência humana é simbólica (opera por representações em um jogo formal de signos, significantes e significados); ii) é necessário distinguir sintaxe de semântica. No primeiro caso, a automação não encontra muitas dificuldades, exatamente por envolver regras formalizadas. O desafio para as máquinas “inteligentes” está na semântica que, para os humanistas mais radicais, é uma barreira intransponível: elas jamais poderiam ter uma compreensão genuinamente subjetiva e sensorial do que os símbolos significam para um humano.

Embora seus primórdios já possam ser identificados na teoria matemática da informação de Claude Shannon (1948) e nos estudos sobre a neuroplasticidade associados a Donald Hebb (1949), a tradição conexionista ganha contornos mais definidos no final da década de 1960, em uma época em que a memória e a capacidade de processamento dos computadores eram insuficientes para testar os seus modelos e gerar aplicações práticas. A ideia básica desta vertente é que o que chamamos de inteligência não envolve representações do mundo por signos que obedecema um conjunto de regras lógicasmas um sistema de aprendizado por estímulos e exemplos assimiláveis por redes neurais que produzem um sistema de cognição distribuída capaz de se auto-organizar. As partes tomadas isoladamente não importam. O que produz as classificações – e, portanto, o comportamento inteligente – é o conjunto da rede: interpretações e operações complexas emergem da interação entre unidades simples de processamento (binárias) que respondem de forma não-linear às informações que recebem do conjunto. Logo, a rede é capaz de conter muito mais informação do que a simples soma dos seus componentes e, por conta disto, a totalidade das informações cognitivas ela nunca pode ser concentrada ou centralizada em uma região ou instância particular (o pesadelo do burocrata).

A IA conexionista começou a ganhar proeminência na década de 1980, em sinergia com o surgimento de computadores com memória e capacidade de processamento capaz de simular operações e gerar aplicações práticas deste modelo. Hoje há uma clara preponderância da IA conexionista sobre a simbólica. Além das exigências de hardware, este tipo de IA depende de datasets gigantescos, só acessíveis aos países centrais e às grandes corporações. Há, além dessa assimetria, um problema ainda mais candente: depois que as redes neurais são adequadamente calibradas, elas passam a operar de forma acelerada e opaca, alimentando discursos tecnofóbicos que, embora muito populares, tendem a ser ignorados pelos Estados centrais e pelas grandes corporações. Não existe nenhum complô ou algo do gênero. A opacidade e a imprevisibilidade da tecnologia de ponta aplicada não são frutos de caprichos de burocratas ou empresários: nunca se sabe que direção específica uma onda tecnológica emergente pode tomar. Quem está efetivamente na disputa pela primazia tecnológica opera sempre em águas ainda não plenamente cartografadas e, sobretudo, aposta em todos os cavalos que puder, pois a penalização pelo atraso costuma ser devastadora.

Eduardo Barros Mariutti – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da UNESP, UNICAMP e PUC-SP e membro da rede de pesquisa PAET&D.

Texto publicado originalmente em: Observatório de Geopolítica do Jornal GGN: Inteligência Artificial Simbólica e Conexionista (jornalggn.com.br)

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